Waldemar
focalizava a mulher nua do calendário, pregado ao longe, no interior do posto
de gasolina.
-
O que é que você está olhando ali dentro - perguntou a esposa, ambos ao lado do
carro, com o frentista.
-
Estou querendo ver que dia é hoje.
-
O máximo que dá pra ver daqui é aquela mulher nua, seu tarado.
-
Não faça isso não! – berrou o frentista – o senhor vai matar a gente!
-
Pelo amor de Deus, Waldemar! – gritou a mullher.
Correram
todos que estavam no posto. É que, distraído, Waldemar tinha acendido um fósforo
junto do frentista que enchia um galão de gasolina. Por um triz, tudo não foi
pelos ares. O frentista se acocorou de susto. A esposa gritava.
-
Eu bem que sabia que um dia você ia me explodir, é o que você quer!
Waldemar,
transido de vergonha, segurava o cigarro frouxo no bico. Entrou no carro. A
esposa pagou pelo galão, aboletou-o na parte de trás da perua, e seguiram
viagem.
-As
férias começaram muito bem, seu Waldemar. Explodir tudo por causa de uma mulher
de calendário.
-Também...
pra que encher um galão de gasolina se a gente tava com o tanque cheio?
-Porque
não sabemos quando vamos encontrar um posto na tal trilha que você quis fazer.
Imagina a gente ficar no meio do mato.
Um
mar se descortina na frente deles. Uma praia longínqua, estendida de infinito a
infinito. Dunas e jardins selvagens orlando tudo.
-
Tô estressado. Vamos dar uma paradinha. Tá muito bonito, e não tem viva alma!
Pararam,
tiraram cerveja gelada do contêiner, sentaram numa duna enrodilhada de jibóias
e observavam embevecidos. Tudo era um templo. E com os ventos alísios, veio por
trás do casal, a mulher mais bonita do mundo. De biquíni. Em direção ao mar. Parou
no meio e, diáfana, pôs-se na posição de lótus, a meditar.
Waldemar
boquiaberto.
D.
Catarina fazendo bico.
-
Fale, Waldemar. Fale o que você está com vontade de dizer.
-
Não estou com vontade de dizer nada.
-
Seja sincero, seu covarde, diga o que você disse pra si mesmo.
-
Eu não falo sozinho.
-
Mas pensou. E vamos deixar de rodeios. O que você achou daquela moça que sentou
ali?
-
Moça? Qual? Ah, aquela ali? Não sei...
-
Fala! É do seu estilo, não é?
-
Na verdade, muito meditabunda pro meu gosto.
-
Por que você escolheu esta palavra?
-
Quis dizer que me parece muito pensativa, reflexiva...
-
Quero saber porque a palavra escolhida foi meditabunda.Você podia ter escolhido
meditante...
-
Aí é erro de português.
-
Eu sou meditabunda?
-
Não acho não.
-
Por que não sou meditabunda?
-
Não vejo você meditar. Se fosse meditabunda, não dizia besteira.
-
Filho da puta (aos prantos)! Você só escolheu a palavra pra me ironizar, dizendo
que ela tem bunda e eu não.
-
Você é paranóica. Não acho a sua bunda feia.
-
Não é feia? Isso é muito pouco, seu Waldemar. Muito pouco. Saiba que eu vou ajeitar
a minha bunda com o dr. Petrônio Aguiar e vou mandar a conta pra você!
Neste
momento, ou na eternidade, a bela se levanta como um esguicho. E começa a alongar
os músculos com a languidez das panteras.
Mais
um silêncio.
-
Ela está se exibindo, Waldemar. E você vendo.
-
Estou parado aqui desde que cheguei. Não mudei o ângulo da minha cabeça, veja, tá
vendo?
-
Não mudou o ângulo da cabeça mas as bolinhas do olho mudaram pra esquerda. Meu
Deus, eu queria saber como é que num lugar deserto desse, aparece essa
descarada. E ainda veio parar exatamente na sua frente. O que é isso?
-
Azar, minha filha, azar.
-
Não tem hotel nem casa por perto. De onde ela veio?
-
É realmente estranho. Sei lá... vai ver não é gente, é anjo.
-
Anjo, canalha?
-
Quero dizer um anjo, uma entidade, uma caipora, sei lá.
De
costas para o casal, a beleza desamarra a parte superior do biquíni.
-
Waldemar... não estou acreditando. Eu vou lá tomar satisfações.
-
Se você for, pego o carro e te deixo sozinha com ela.
-
Você seria capaz? Waldem... vamos embora agora!
-
Parei pra descansar e daqui não saio.
Waldemar
transpira, tem tiques rápidos, pisca muito.
A
beleza abaixa a parte de baixo. Nua, ainda de costas, caminha em direção ao
mar, num ritmo que, tanto para Waldemar como para Dona Catarina, teve efeito de
slow-motion. Ela mergulha em slow-motion, e em slow-motion são as águas que explodem quando ela afunda. Mais
silêncio. Ela não volta à tona.
-
Cadê a puta?
-
Meu Deus, deve estar morrendo afogada! Vou lá!
Waldemar
chega quase a ficar em pé quando Dona Catarina lança-se contra ele e se engalfinham
na areia.
-
Não vai! Ela vai te puxar pro fundo!
-
Ela vai morrer!
-
Não, paspalho, veja ela ali! Olha lá a cabecinha da desgraçada.
Exaustos,
voltaram à mesma posição, numa tensão de emitir raios, porque tudo indicava que
a bela se dirigia de volta para areia, agora de frente.
A
tarja do mar lhe ia descendo os ombros. Os seios, o ventre, a pélvis e, finalmente,
aquilo que era o começo e o fim de tudo. Depois veio o resto, ela inteiriça. Pisando
nas nuvens até o lugar original, sítio sagrado. Dona Catarina, gaga.
-
nã...não olhe.
-
Não consigo. Juro que não consigo. Quer dizer, não sou eu, entrou uma coisa em
mim, não sou eu. Sou um cavalo branco que vai levá-la montada.
Dona
Catarina cravou as unhas no chão e jogou areia nos olhos dele. Cego e
desesperado, o cavalo branco esfregava as vistas para enxergar sua revelação. Virou
a lata de cerveja inteira nos olhos. Foi a deixa. Dona Catarina foi até o
carro. Ruídos de coisas batendo, de porta fechando, e outros barulhos. Waldemar
virou outra cerveja nos olhos. Dona Catarina marchou até a deusa, deitada de
bruços, alheia a tudo. Como estava molhada, a bela não percebeu o líquido sendo
derramado no seu corpo. Só um cheiro de posto, porque Dona Catarina derramou o
galão de gasolina em toda ela. Antes que a bela desse conta, o fósforo caiu em
suas costas.
A
explosão foi imediata. Waldemar viu a Vênus voar para o nada, cair, levantar de
novo e rodar em chamas. A
girar, a girar, talvez procurando o caminho do mar, mas já não conseguia achar.
Correu para eles, uma pira estridente sem rumo, os gestos de possessa, o rosto
trincado da dor. Ele, que já não era mais ele, viu que ela já não era mais ela.
Caiu de joelhos. À sua frente, os olhos fora das órbitas, a pele rubra e negra,
uma descamação de árvore velha, o urro dos danados. Caiu nas palhas secas, que
se juntaram ao inferno. Waldemar contemplando a crescente deformação. A bela é
a horrível. A beleza pousa nas pessoas como uma borboleta, e logo as abandona.
Waldemar não pensou, mas compreendeu.
-
Vamos logo, Waldemar, precisamos salvar você.
-
Salvar?... a mim?
-
Sim, quando a polícia achar, não vai entender nada.
-
Mas foi você quem fez isso...
-
Claro que foi você. Há algumas horas antes, você tentou explodir o posto de gasolina,
todo mundo viu. Não teve êxito. Aí queimou a primeira que encontrou. É só eu
abrir o bico e eles ligam os fatos.
-
Catarina!
-
Entra no carro, imbecil, vou te salvar.
Waldemar
entrou como um velho urso obediente. Dona Catarina deu partida. Ele nem prestou
atenção que ela falava ao celular. Só olhava a fogueira que deixava. Que deixou.
-
Catarina, vamos voltar pra casa – soluçou.
-
Sim, pintinho, já estamos indo, mas antes, vamos passar no consultório do dr. Petrônio
Aguiar, acabei de marcar a consulta. Você fica na sala de espera. Vai ser
rapidinho. Vou falar sobre o ajeitamento da minha bunda. O preço, vou pedir pra
ele dividir. Depois a gente vai pra casa, tá? Eu te amo.
4 comentários:
Uma yogue imolada numa praia deserta brasileira...adorei. forte abraço
Obrigado, Wair.
mas uma yogue calipigia provocante - e ainda por cima exibicionista - não seria um contrasenso?(só para provocar)
Conheço as iogues aqui no Rio de Janeiro que são exatamente isso. Ao invés de ser espírito, foi ser carne. Daí a punição. Não esqueça que sou católico.
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