sexta-feira, 1 de março de 2013

A YOGUE














Waldemar focalizava a mulher nua do calendário, pregado ao longe, no interior do posto de gasolina.
- O que é que você está olhando ali dentro - perguntou a esposa, ambos ao lado do carro, com o frentista.
- Estou querendo ver que dia é hoje.
- O máximo que dá pra ver daqui é aquela mulher nua, seu tarado.
- Não faça isso não! – berrou o frentista – o senhor vai matar a gente!
- Pelo amor de Deus, Waldemar! – gritou a mullher.
Correram todos que estavam no posto. É que, distraído, Waldemar tinha acendido um fósforo junto do frentista que enchia um galão de gasolina. Por um triz, tudo não foi pelos ares. O frentista se acocorou de susto. A esposa gritava.
- Eu bem que sabia que um dia você ia me explodir, é o que você quer!
Waldemar, transido de vergonha, segurava o cigarro frouxo no bico. Entrou no carro. A esposa pagou pelo galão, aboletou-o na parte de trás da perua, e seguiram viagem.

-As férias começaram muito bem, seu Waldemar. Explodir tudo por causa de uma mulher de calendário.
-Também... pra que encher um galão de gasolina se a gente tava com o tanque cheio?
-Porque não sabemos quando vamos encontrar um posto na tal trilha que você quis fazer. Imagina a gente ficar no meio do mato.

Um mar se descortina na frente deles. Uma praia longínqua, estendida de infinito a infinito. Dunas e jardins selvagens orlando tudo.
- Tô estressado. Vamos dar uma paradinha. Tá muito bonito, e não tem viva alma!
Pararam, tiraram cerveja gelada do contêiner, sentaram numa duna enrodilhada de jibóias e observavam embevecidos. Tudo era um templo. E com os ventos alísios, veio por trás do casal, a mulher mais bonita do mundo. De biquíni. Em direção ao mar. Parou no meio e, diáfana, pôs-se na posição de lótus, a meditar.
Waldemar boquiaberto.
D. Catarina fazendo bico.

- Fale, Waldemar. Fale o que você está com vontade de dizer.
- Não estou com vontade de dizer nada.
- Seja sincero, seu covarde, diga o que você disse pra si mesmo.
- Eu não falo sozinho.
- Mas pensou. E vamos deixar de rodeios. O que você achou daquela moça que sentou ali?
- Moça? Qual? Ah, aquela ali? Não sei...
- Fala! É do seu estilo, não é?
- Na verdade, muito meditabunda pro meu gosto.
- Por que você escolheu esta palavra?
- Quis dizer que me parece muito pensativa, reflexiva...
- Quero saber porque a palavra escolhida foi meditabunda.Você podia ter escolhido meditante...
- Aí é erro de português.
- Eu sou meditabunda?
- Não acho não.
- Por que não sou meditabunda?
- Não vejo você meditar. Se fosse meditabunda, não dizia besteira.
- Filho da puta (aos prantos)! Você só escolheu a palavra pra me ironizar, dizendo que ela tem bunda e eu não.
- Você é paranóica. Não acho a sua bunda feia.
- Não é feia? Isso é muito pouco, seu Waldemar. Muito pouco. Saiba que eu vou ajeitar a minha bunda com o dr. Petrônio Aguiar e vou mandar a conta pra você!

Neste momento, ou na eternidade, a bela se levanta como um esguicho. E começa a alongar os músculos com a languidez das panteras.
Mais um silêncio.
- Ela está se exibindo, Waldemar. E você vendo.
- Estou parado aqui desde que cheguei. Não mudei o ângulo da minha cabeça, veja, tá vendo?
- Não mudou o ângulo da cabeça mas as bolinhas do olho mudaram pra esquerda. Meu Deus, eu queria saber como é que num lugar deserto desse, aparece essa descarada. E ainda veio parar exatamente na sua frente. O que é isso?
- Azar, minha filha, azar.
- Não tem hotel nem casa por perto. De onde ela veio?
- É realmente estranho. Sei lá... vai ver não é gente, é anjo.
- Anjo, canalha?
- Quero dizer um anjo, uma entidade, uma caipora, sei lá.

De costas para o casal, a beleza desamarra a parte superior do biquíni.

- Waldemar... não estou acreditando. Eu vou lá tomar satisfações.
- Se você for, pego o carro e te deixo sozinha com ela.
- Você seria capaz? Waldem... vamos embora agora!
- Parei pra descansar e daqui não saio.

Waldemar transpira, tem tiques rápidos, pisca muito.
A beleza abaixa a parte de baixo. Nua, ainda de costas, caminha em direção ao mar, num ritmo que, tanto para Waldemar como para Dona Catarina, teve efeito de slow-motion. Ela mergulha em slow-motion, e em slow-motion são as águas que explodem quando ela afunda. Mais silêncio. Ela não volta à tona.

- Cadê a puta?
- Meu Deus, deve estar morrendo afogada! Vou lá!
Waldemar chega quase a ficar em pé quando Dona Catarina lança-se contra ele e se engalfinham na areia.
- Não vai! Ela vai te puxar pro fundo!
- Ela vai morrer!
- Não, paspalho, veja ela ali! Olha lá a cabecinha da desgraçada.
Exaustos, voltaram à mesma posição, numa tensão de emitir raios, porque tudo indicava que a bela se dirigia de volta para areia, agora de frente.

A tarja do mar lhe ia descendo os ombros. Os seios, o ventre, a pélvis e, finalmente, aquilo que era o começo e o fim de tudo. Depois veio o resto, ela inteiriça. Pisando nas nuvens até o lugar original, sítio sagrado. Dona Catarina, gaga.

- nã...não olhe.
- Não consigo. Juro que não consigo. Quer dizer, não sou eu, entrou uma coisa em mim, não sou eu. Sou um cavalo branco que vai levá-la montada.

Dona Catarina cravou as unhas no chão e jogou areia nos olhos dele. Cego e desesperado, o cavalo branco esfregava as vistas para enxergar sua revelação. Virou a lata de cerveja inteira nos olhos. Foi a deixa. Dona Catarina foi até o carro. Ruídos de coisas batendo, de porta fechando, e outros barulhos. Waldemar virou outra cerveja nos olhos. Dona Catarina marchou até a deusa, deitada de bruços, alheia a tudo. Como estava molhada, a bela não percebeu o líquido sendo derramado no seu corpo. Só um cheiro de posto, porque Dona Catarina derramou o galão de gasolina em toda ela. Antes que a bela desse conta, o fósforo caiu em suas costas.

A explosão foi imediata. Waldemar viu a Vênus voar para o nada, cair, levantar de novo e rodar em chamas. A girar, a girar, talvez procurando o caminho do mar, mas já não conseguia achar. Correu para eles, uma pira estridente sem rumo, os gestos de possessa, o rosto trincado da dor. Ele, que já não era mais ele, viu que ela já não era mais ela. Caiu de joelhos. À sua frente, os olhos fora das órbitas, a pele rubra e negra, uma descamação de árvore velha, o urro dos danados. Caiu nas palhas secas, que se juntaram ao inferno. Waldemar contemplando a crescente deformação. A bela é a horrível. A beleza pousa nas pessoas como uma borboleta, e logo as abandona. Waldemar não pensou, mas compreendeu.

- Vamos logo, Waldemar, precisamos salvar você.
- Salvar?... a mim?
- Sim, quando a polícia achar, não vai entender nada.
- Mas foi você quem fez isso...
- Claro que foi você. Há algumas horas antes, você tentou explodir o posto de gasolina, todo mundo viu. Não teve êxito. Aí queimou a primeira que encontrou. É só eu abrir o bico e eles ligam os fatos.
- Catarina!
- Entra no carro, imbecil, vou te salvar.
Waldemar entrou como um velho urso obediente. Dona Catarina deu partida. Ele nem prestou atenção que ela falava ao celular. Só olhava a fogueira que deixava. Que deixou.
- Catarina, vamos voltar pra casa – soluçou.
- Sim, pintinho, já estamos indo, mas antes, vamos passar no consultório do dr. Petrônio Aguiar, acabei de marcar a consulta. Você fica na sala de espera. Vai ser rapidinho. Vou falar sobre o ajeitamento da minha bunda. O preço, vou pedir pra ele dividir. Depois a gente vai pra casa, tá?  Eu te amo.

4 comentários:

wair de paula disse...

Uma yogue imolada numa praia deserta brasileira...adorei. forte abraço

Nelson disse...

Obrigado, Wair.

wair de paula disse...

mas uma yogue calipigia provocante - e ainda por cima exibicionista - não seria um contrasenso?(só para provocar)

Nelson disse...

Conheço as iogues aqui no Rio de Janeiro que são exatamente isso. Ao invés de ser espírito, foi ser carne. Daí a punição. Não esqueça que sou católico.