quarta-feira, 6 de março de 2013

O CAMINHO






 

- Me passe o arroz.

- Não.

- Ferdinando, me passe o arroz.

- Eu acho essa frase de gente que tem vida besta. “Fulano, me passa a salada, Mariquinha, me passa o feijão”. Não posso, Helena.

- Nem sei o que dizer. Eu mesma pego o arroz. Obrigada.

- Você já viu algum personagem de Edgar Allan Poe ou Herman Melville dizer “me passa o arroz?”

- Só no caso de comerem em Buffet.

- Era o que faltava imaginar Roderick Usher ou o capitão Ahab comendo num quilo.

- Não seja amargo. Até imagino o que você sente. Por exemplo, tem um pior: me passa o refresco.

- É verdade, Helena, the horror, the horror.

- Estou chocada. Você quer que a gente contrate uma copeira pra nos servir à francesa?

- Com licença, vou aqui ao quarto e volto.

Helena não era uma mulher medíocre, sabia que havia algo de errado em dizer “me passe o arroz”. Mas não sabia o que fazer. Ficou olhando o arroz repassando toda a sua vida como num filme. Por isso, não percebeu que Ferdinando estava no quarto há mais de uma hora. Apareceu no alto da escada, turbante de seda na cabeça, maquiado com muito esmero; jóias, bem poucas. Só o par de brincos e colar de macassita que faiscaram no vão. O vestido era de sóbrio corte inglês. Desceu os degraus de forma perfeitamente natural, apesar de nunca, nunca ter calçado um salto alto. Helena nada disse. Ele aproximou-se com uma pequena malinha de mão.

- Não estou levando nada. Deixo casa, carro, investimentos, tudo pra você. Seja feliz, isto é uma ordem.

Ele cruzou a sacada ao meio dia em ponto, atravessou a rua que dava para um extenso capinzal, caminho que seguiu. Helena correu até a porta. Viu Ferdinando sumir no horizonte dos capins rumo à floresta longínqua que mais adiante se erguia num despenhadeiro de verde mais escuro, quase negro. Antes que desse qualquer soluço, Helena iluminou-se e sentiu um longo desejo de também traçar o mesmo caminho. Só que nua.




4 comentários:

Rodrigo Garcia (Rodrigo de Andrade Garcia da Silva) disse...

Nelson, como você escolhe bem o nome de suas personagens. Ferdinando me lembra o arquiduque, o que no contexto dessa história ficou ótimo. Congratulações

Nelson disse...

Obrigado, Rodrigo.

wair de paula disse...

Helena, me passe a cicuta...
Ferdinando, me passe a navalha...

Nelson disse...

Sim, Wair.