sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

MANÉ BILÉ











A borboleta desavisada pousou no ombro do fazendeiro Mané Bilé. Com a mão direita, pá! Esmagou a delicadeza um segundo antes do inseto se localizar.

 
- Adalberto, leva esse besouro daqui.
- Papai, seu louco! Não era um besouro, era uma Danaus Plexipus, a Borboleta-monarca!
- Borboleta-Monarca é o cacete, sua bicha safada. É tudo besouro e eu não estou nem aí.
- Bem que mamãe disse que ia ser um problema eu conviver com uma pessoa bruta que nem você.
- Já estou muito aborrecido em sustentar um parasita, ainda mais agüentar suas frescuras. Por que você não foi morar com sua mãe?
- Porque mamãe foi refazer a vida dela, e estou dando um tempo pra mim mesmo, tá? E o senhor me chamou de bicha safada.
- Perdão, Adalberto. É que eu tenho estado nervoso. Mas você não ajuda. Pois pegue o alazão que te dei e vá vistoriar a fazenda. Que quadro é esse que você botou na parede?
- É uma reprodução de Salomé, do pintor austríaco Gustav Klimt.
- Essa mulher tá com cara de maconheira. Se não for maconheira, tá gozando.
- Pai, ela está morta. Veja a expressão dela.
- E essa cabeça aí embaixo, quem é?
- São João Batista.
- Se sua avó estivesse viva, ia gostar muito de ver São João metido em putaria.
- Pai, eu queria te pedir uma coisa.
- Lá vem.
- Eu queria pedir pra receber um amigo meu aqui. Ele é do Rio.
- Rio de Janeiro. Conheceu isso onde? Ele é assim... da mesma personalidade que você é?
- Personalidade? Que é que o senhor quer dizer com isso?
- Você entendeu.
- Nada a ver, pai. Ele é surfista.
- E surfista não pode ser da mesma personalidade que você não, é? Essa foi boa.
- O senhor está, como sempre, muito enganado acerca do mundo.
- Avalio. Por derradeiro, esse seu amigo é daquele lugar, Ipanema?
- Bem...perto.
- Seu Totonho foi visitar a irmã lá e disse que tem uma rua que só tem gente da tua personalidade. Tomaram a rua toda. Seu Totonho disse que tava tudo dançando.
- É impressionante como o senhor é ignorante.
- Vou dizer uma coisa, Adalberto. Tem uma banda minha que é ignorante sim. Mas tem outra banda que um dia, quando você deixar de ser menina, vai saber que é o contrário.
- Vamos parar de ofensas. O Léo pode vir, não é?
- Não. Estou esperando uma amiga minha.
- Amiga? De onde?
- Do Rio de Janeiro.
- Eu acho engraçado o senhor. Não deixa meu amigo vir, e vai botar uma puta no lugar da minha mãe, chiquérrima.
- Puta não.
- Ah, conheceu ela onde?
- Não é da sua conta. E é bom que você trate ela muito bem, que ela é fina. Secretária executiva.
- Aposto que o senhor conheceu ela num congresso de secretárias executivas na Avenida Atlântica. Pois bem: vou avisar a mamãe.
- Pra que, infeliz?
- A fazenda é metade dela, e ela tem umas vistorias pra fazer aqui. É bom, porque elas se conhecem e ficam amigas.
- Não aproxime a sua mãe de Sheila Shirley.
- Sheila Shirley? Ahahaha!
- Quando é que esse viado vem?
- Hoje. Ele já está na cidade. E a sua vadia?
- A qualquer hora.

O silêncio se fez benfazejo para os pensamentos do pai e do filho. Olharam-se, desviaram o olhar, olharam-se de novo. E seu Mane Bilé começou.
 
- Tá bem. Mas se eu notar qualquer coisa entre vocês, qualquer safadeza, nem que seja um olhando pro outro, eu juro que eu capo o carioca.
- Tudo vai depender do que eu ver entre o senhor e Sheila Shirley. Vou agora pegar o Léo na estação.
 
Adalberto pegou as chaves do carro, saiu pisando firme, até chegar ao terraço, onde acelerou o passo, fez-se serelepe, cantarolou, deu partida na Ranger e ganhou mundo.
Ficou seu Mane Bilé vendo o carro se afastar, até sumir, com os olhos apertados. E lá continuou, quando viu de muito longe o carro voltar, com a suposta presa. Verdadeira onça canguçu esperando a gazela vir beber água.
O carro freou firme, saltou Adalberto, saltou Léo, com mochilas e bagagens.
 
-Pai, esse é Leo.
 
Seu Mané perscrutou tudo, cada movimento, cada detalhe do corpo bem definido na camiseta branca e no jeans surrado. Seu Mané Bilé procurou algo. Na cor morena dos braços nus, nas veias desenhando a virilidade, nas convexidades marcianas, no maxilar de estátua. Seu Mane Bilé não gostava nada daquilo. Parecia entristecer-se. Pensou nos ancestrais, no avô, no tio-bisavô, no pai e finalmente, em Adalberto.
 
- Adalberto, por que você não está carregando essa tralha toda e deixou tudo pra ele? – falou irado.
- Pai, ele está fazendo uma gentileza.
- Aqui não tem esse negócio de gentileza não. Vá logo ajudando.
- Boa tarde, seu Manuel, gaguejou o rapaz de bronze, animado com a gentileza. Durou pouco.
- Hum...- grunhiu seu Mané Bilé, deixando o outro a olhar a propriedade, sem jeito.
 - A gente fez umas compras, Papai. Vou cozinhar coisas maravilhosas.
- Aqui quem cozinha é a cozinheira. Aliás, tá na mesa.
A mesa rústica era cumprida para os três personagens. Pai e Léo nas cabeceiras, Adalberto no meio. Conversavam em monossílabos.
- Sim senhor, falou Léo, o Adalberto tem sim, uma personalidade forte!
- Porque o senhor está gritando? – retrucou seu Mané.
- Desculpe. É que essa mesa é tão grande, que pensei que o senhor não me ouviria bem.
- Tá acostumado a viver em galinheiro. Aqui tudo é grande, limpo, sem frescura.
- Pai, é muito caro morar na zona sul do Rio. Por isso tudo lá é pequeno, apertado.
 
E seu Mané olhava Léo, procurando. Caçando algum sinal. E a cada momento, o achava mais másculo. A voz grave, as sobrancelhas cerradas, o nariz grande. Mas o que o incomodava mais era a glote, se pronunciando imoralmente da gola. Era demais.
 
- Por que você é assim? – espezinhou seu Mané.  
- Assim como, senhor?
- Como assim, papai?
- Assim, sozinho, sem mulher?
- Mas eu não sou sozinho não. Tenho uma garota.
- Garota? E cadê ela que eu não to vendo?
- Ela ficou no Rio.
- Então você tem uma banda que é homem... e outra banda que é mulher.
- Papai!
- Tenho uma banda só, seu Mané. Sou homem.
- E o que é que você está fazendo aqui com meu filho?
- Ele é meu amigo.
- Pai, tenho uma coisa a dizer pro senhor.
- Lá vem.
- O senhor não quer privacidade com a Sheila Shirley?
- Seu tarado de uma figa. Tá pensando em pedir privacidade também?
- Ao contrário, pai. Eu vou passar uns dias com Léo no Rio. O senhor me dá dinheiro?
- Ele vai lhe levar? Então eu vou capar ele primeiro.
 
Seu Mané deu um salto, Leo também. Rodaram a mesa.  Pega não pega. Roda não roda. Cai a louça, caem os copos cheios. E Léo olhou para baixo. Vinho tinto entre as pernas. Enquanto a visão sugestiva lhe fez subir o estômago, atiçou no outro a cólera da fera. Ainda rodaram a mesa um atrás do outro antes de Leo correr pro quarto e se trancar. Adalberto, atracado com o pai.
 
- Papai, não faça isso!
- Vou capar o carioca.
- Não vai de jeito nenhum!
- Ah, não quer que eu cape ele por que? Diga, desgraçado!
 
Seu Mané segurou Adalberto pelo braço e o imobilizou no chão, segurando firme.
 
- Vou amarrar você e capar o carioca!
- Não vai de jeito nenhum!
- Não quer que eu cape ele por que?
- Me solta!
- Já perguntei, afeminado, não quer que eu cape ele por que?!
 
Com muita agilidade e força, o fazendeiro puxou a toalha da mesa, jogando tudo pelos ares, torceu-a e começou a amarrar Adalberto. Uma borboleta Danaus Plexicus que havia entrado pela janela pousou no nariz do seu Mané. Com um grito de ódio, o fazendeiro esmurrou o próprio nariz, que sangrou. A borboleta mártir feneceu. Adalberto livrou-se e correu pro quarto. Lá trancou-se com Léo.
Atraídos pelo barulho, os empregados da fazenda, atônitos, olhando seu Mané, com o nariz sangrando.
 
- Seu Mané, foi Adarberto que deu no senhor? – perguntou um capataz. Seu Mane Bilé refletiu.
- Foi.
- Seu Adalberto tá valente assim, seu Mané?
- Valente sim! E tudo já pra fora, que ninguém tem nada a ver com isso.
 
Os empregados correram. Seu Mane respirou. Esgueirou-se no corredor do quarto.
 
- Adalberto, pode sair. Tem capação mais não. Venham pra sala os dois!
 
Léo e Adalberto já chegam na sala com as mochilas e coisas penduradas de última hora. Leo tremia nas bermudas que trocou pelas calças, por causa do vinho. Bermuda comprida, coisa varonil. Mané Bilé o enquadrou e o estudou de novo. Às vezes, a vida mostra que a própria esperança parece causar a solução. E a solução brilhava tênue, muito tênue, no tornozelo do rapaz. Linda. Frágil. Uma correntinha dourada, provavelmente vagabunda. Mané Bile não perdeu tempo.
 
- O que é isso?
- Ahã? Isso? É uma correntinha.
- Eu só vi usar isso meu louro e puta.
- Pai! – gritou Adalberto.
- Foi minha namorada que me deu.
- Deixa de falar dessa porra dessa namorada, que eu não quero saber disso!
- Pai!
 
Seu Mané pegou Léo pela gola.
 
- Olhe aqui dentro do meu olho. Continue olhando.
Léo, como que hipnotizado, deixou-se preso pelo olhar do canguçu.
 
- Na relação com meu filho, você é o namorado ou a namorada?
- ...
- Responda, derrota!
- A namorada.
 
Seu Mané largou Léo, num suspiro.
 
- Adalberto, pode ir. Amanhã vou à cidade e deposito dinheiro na sua conta. Vá se embora e leve a sua namorada pro Rio. Aqui não é lugar pra ela.
 
Adalberto pega a mão do pai e a beija.
- Bença, pai.
- Deus te abençoe, meu filho.
 
Léo e Mané Bilé se olham, estáticos, para o ato da despedida. Sem jeito, Léo oferece a mão para um aperto. Mas Mané Bilé mantém o braço em riste, para um outro beija-mão. Hesitante, Léo a beija.
- Bença, seu Mané Bilé.
- Deus te abençoe, minha filha. Cuide bem de Adalberto e obedeça a ele.
 
Os dois saem com as malinhas pra fora de casa, deixando seu Mane só, no vazio da casa. Cansado de tudo, leva a mão ao peito, e a angústia o faz sentar no chão.
E da porta, eis que surge a flamboyant Sheila Shirley, toda de encarnado, malas em punho, aos gritos.
 
- Mané Bilé, gato-do-mato, cheguei!
 
Vendo Mané no chão e atormentado, ela grita, sem classe alguma.
 
- Manezinho! o que houve, meu Deus?
- Chegue mais pro meio da sala, minha filha. Mais. Aí. Agora baixe as calçola, deixe a periquita livre, levante a saia, abane, abane... e pulverize esta fazenda de mulher!
 

 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

A HORA DA VIRADA







Creio que mais que a humanidade inteira, sempre tive medo desse negócio de virar. Desde criança, eu ouvia falar em gente que virou lobisomem, que virou vampiro, que virou sapo. Esse negócio de virar sempre esteve em todas as culturas antigas. Nas aldeias do noroeste da Índia, por exemplo, as pessoas extraordinariamente velhas, quando não eram mais vistas, é que tinham virado tigres. E ganhavam as matas, aparecendo de vez em quando pra espiar os parentes. As transformações sempre surpreenderam, mesmo que sejam coisas naturais, como virar adulto. Haja vista o insuportável “Nossa, como esse menino cresceu! Virou um rapazinho”.

 

Mas dentro de toda essa miríade de transformações, lembro que o que mais me impressionava era esse tipo de conversa:

- Cadê Heloisa?

- Ah, formou-se em médica.

- E Mary-Ann?

- Ah, foi mãe agora há pouco.

- E Lucíola?

- Virou sapatão.

 

Pronto. A maldição estava feita. E eu pensava como é que uma mulher virava sapatão. Porque se uma se graduava estudando na faculdade, outra era mãe depois de copular, e a cidadã virava sapatão como? Que diabo ela fazia pra isso? Se ela virou, é porque antes não era. Ouvi de tudo: problemas em casa, filha de pais separados, fumou muita maconha, juntou-se com gente que não presta. Não me importei muito com esses motivos, não me fazia sentido. Tinha que ser um motivo muito, muito superior. Mas a minha curiosidade não era só essa: era o virar. Qual era o toque de viração? Em que exato momento o ser humano virava sapatão? Os lobisomens eu sei. Vai criando uns pelinhos na mão, os dentes vão crescendo, as garras vão se armando, e daí o bote. Lobisomem, certamente.

 

Imaginei uma moça feminina e frágil de nome Dilaila, por exemplo, indo a um supermercado pra comprar docinhos que a tia pediu. “Mas só docinhos, não me traga mais nada”. Lá foi ela bonitinha, comprando os docinhos. Mas o supermercado estava tão lindo, tão variado, que ela pensou em levar algo mais. Ia sorrindo para tomates, fiambres, alfaces. Aí viu  uma prateleira repleta de macaxeira. E Dilaila pensou: “vou levar uma macaxeirazinha pra ceia de titia”. Contrariando a vontade da tia, a moça pegou na macaxeira – variação da mandioca-brava. Apalpou e sentiu a rudeza, o impulso, a forma roliça. Aí segurou com determinação. Experimentou as forças da terra, a latência do tubérculo enterrado, o toco e o poder. Dilaila ergueu a macaxeira para o alto. Deu-se um pipoco surdo, que só ela ouviu. Pou.

Irritou-se. Pagou no caixa reclamando do preço. Saiu pra rua chutando lata, comprou uma camisa do Sport Clube do Recife e botou por cima. Ficou até meio cangalha. Falou com sua ex-costureira levantando o polegar e entrou no barbeiro. Chegou em casa dando murros na porta.

A tia de dentro perguntou.

- Quem está batendo com força?

- Sou eu, porra.

- Maria do Socorro? Sua voz tá grossa!

- Sou eu, Dilaila, tá mouca?

A tia abriu a porta e viu a figura da sobrinha batendo um punho no outro com a camisa do Sport e o cabelo de Xitãozinho & Xororó.

- Minha filha, você virou sapatão?

- Virei, titia, e eu vim aqui pra te comer!











sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

MARIA PIA

 



 
Maria Pia era uma atriz que angariava aplausos. O que ninguém sabia é que, no fundo obscuro de sua alma, crescia um desejo sinistro. O sonho de Maria Pia era, pelo menos uma vez na vida, levar uma vaia. Daquelas de estourar tímpanos. E de levar tomatadas, bolinhos de papel e de ser escorraçada em público e imprensa.  Ela sabia disso, só não entendia o porquê.

Um prazer mórbido, pensava sem preocupação.

Mas Maria Pia continuou a brilhar, abarcando públicos mais abrangentes, até longínquos, e a coisa foi tomando outras proporções. Passou a ouvir uma voz de suas profundezas, que dizia: “pare com isso, Maria Pia. Já está demais.” A cada “brilhante!”, a cada “bravíssima!”, ela ouvia de si: “Está vendo? Você depende disso”. E ela refletia:

- Qual é o problema? Dependo disso com o maior orgulho!

- Você não se sente idiota dependendo dos outros?

- Mas é o meu trabalho. Tento fazer o melhor que posso.

- Você quer é aparecer.

- Não quero não.

- Sei. O pior é a sua cara-de-pau de enganar os outros. Até porque você sabe muito bem que é uma péssima atriz.

- Então por que me aplaudem?

- Por moda. Inventou-se que você é genial. E você sabe que o público é, antes de tudo, burro. E a crítica especializada não tem ficado longe disso. Ficou chique dizer que você é boa atriz.

- Quem é você?

- Eu que pergunto, caceta! Essa máscara tem que cair. Você não sabe das delícias de um fracasso, já lhe ensinou o nosso Nelson. É o fracasso quem a colocará em seu devido lugar.

Mas a carreira continuava célere, Maria Pia adorada por todos, e a própria voz ali junto, nos momentos mais cruciais do palco. Certa vez, em uma cena de Medeia, no instante em que a personagem revela a Jasão que matou os filhos, a voz interior disse:

- A hora é essa. Coloca na fala de Medeia a voz do Pato Donald.

Em outra, quando Julieta caiu morta, a voz:

- Abre os olhos e ressuscita aquela frase punk manjada: Julieta is not dead!  

E quando Blanche Dubois foi atacada por Kowalsky:

- Avisa pra platéia que você não pode cair de costas por causa de seu furúnculo no cóccix. Levante a saia e mostre a pereba.

E o grande dia chegou: no New York Times, em letras exageradamente garrafais: MARIA PIA. A ATRIZ DO SÉCULO. Ela estava em Telaviv, quando levou o choque. Em minutos, ia entrar em cena com “A boa alma de Sechwan”, de Brecht, para os israelenses. Nesta noite de gala, foi aplaudida por 20 minutos ininterruptos. Durante este tempo, teve que continuar agradecendo, fazendo reverências e gracejos dezenas de vezes, enquanto o turbilhão em sua cabeça já a estava fazendo ficar oca, pois suas vísceras pareciam se aniquilar, como a cobra come o próprio rabo. Ouviu coisas indizíveis dela para ela mesma. Palavras de baixíssimo calão, intimidades grotescas, insultos irreveláveis. Parou de ouvir por uns segundos. Mas depois...

- E aí, sem-vergonha?

- Sim. É insuportável.

Olhou a platéia como quem observa  multidões do planeta, e disse:

- Senhoras e senhores. Foi com grande prazer que apresentei um dos textos mais importantes da civilização. Aquele que fala de nossa dualidade, de nosso céu e de nosso inferno. Brecht conhecia e amava o ser humano. Com todas as nossas contradições. O mal e o bem. Por isso, vou falar um trecho dito por uma figura histórica: “É sempre mais difícil lutar contra a fé que contra o conhecimento”.
 
Aplausos.

- Esperem, esperem. Gostaria de acrescentar que este trecho que vocês aplaudiram com tanto entusiasmo é do senhor Adolf Hitler.

A descomunal platéia judia em sua totalidade calou-se como um mar sem vento. Maria Pia continuou parada, querendo mirar o olho fundo de seu público. E esperou finalmente as pedradas da mulher adúltera.
Silêncio. Uma tosse. Pensamentos cruzando. Murmúrios. Uma batida de mão. Duas. Estalos de vários lados. Foi–se formando uma tempestade sobre o navio. As palmas.

- Viva Brecht!

- Viva Freud!

- Viva Maria Pia!

O golpe foi mortal. Maria Pia já havia dito a maior ofensa possível, não tinha como ir além. Não! Ela chorou, berrou, socou a cara, abaixou-se, bateu doze vezes a cabeça no chão, rolou pelo palco como um cigarro, levantou-se, arrancou vários cabelos que cobriam o lobo parietal esquerdo e o lobo parietal direito, enquanto o  aplauso avolumava.

- Magnífica!

E ela pensou pela última vez: a unanimidade...
Levou a mão ao peito, e caiu já morta.

MARIA PIA MORRE SOB ESTRONDOSO APLAUSO, disse o New York Times. Seu corpo desfilou pela Broadway sob chuva de pétalas.