sexta-feira, 15 de março de 2013

A CABEÇA






Marily acordou sem noção. Não se sentia bem. Devia ser ressaca, pensou. Pelo menos não estava com dor de cabeça. Sem conseguir lembrar da noite passada, foi ao banheiro lavar o rosto. E veio o choque. Olhou-se no espelho, não conseguiu enxergar a própria cabeça.

- Meu Deus, estou cega.

Marily ainda teve dicernimento de perceber que cega ela não estava, já que via tudo, a não ser a cabeça.

- Meu Deus, estou cega de cabeça.

Marily chorou no chão do banheiro. O telefone tocou até disparar. “Vou ligar pra  urgência oftalmológica” – pensou. O telefone tocou novamente. Ela não ia atender de novo, mas precisou pegar o fone, já que ia ter que ligar.

- Alô! – atendeu chorando.

-  Atenda o telefone, vagabunda – respondeu a voz.

- Quem fala?

- Não está reconhecendo, sua inútil?

- Bem... ainda não. Mas seja quem for, não posso falar agora, estou com problemas.

Marily desligou na cara da pessoa. Pegou o número da urgência oftalmológica e se preparou para ligar, sem conseguir. A pessoa do outro lado não havia desligado.

- Por favor, desligue! Estou precisando fazer uma ligação urgente!

- Vai ligar pra onde, traste?

- Vou chamar a ambulância!

- Não perca seu tempo.

-  Desligue! Você não sabe o que estou passando.

- Sei sim. E já que sua burrice a impede de saber quem está falando, vou ter que dizer. Aqui é a sua cabeça.

Novo choque. Marily caiu no chão, com telefone e tudo. Era sua própria cabeça quem falava do outro lado da linha. Parecia furiosa, parecia espumando.

- Estou ligando a contra-gosto.

- Como foi isso, por que você está separada de mim?

- Você perdeu a cabeça na festa do Eddie Greenhaugh. Tomou todas as drogas, copulou com cinco...

- O que é copular?

- Cale-se, ignorante! Você fudeu, se melecou, se espojou, fez seu escândalo e foi embora sem me levar. Esqueceu a bolsa, as chaves e a própria cabeça. E olhe que eu estava muito bem presa.

- Então corra pra cá, pelo amor de Deus.

- Nunquinha. Depois que me libertei de você, descobri muita coisa na minha vida. Um mundo de sensações, de pensamentos. Estou livre.

- Mas eu não posso viver sem você!

- Então por que me esqueceu, desgraçada? Fiquei aqui perdida na casa do Eddie Greenhaugh sozinha na biblioteca, escondida, magoada! – soluçou.

- Perdão! Eu nunca mais vou fazer isso!

- Não perdôo nunca – recompôs-se a cabeça – mas aí,  na minha solidão naquela biblioteca imensa, dei uma passadas nuns Kafka, nuns Dostoievsky, nuns Poe... e descobri que não preciso de você.

- Não posso ficar sem cabeça. Não sei fazer nada, só somar e diminuir.

- Puta que pariu, nem dividir e multiplicar?

- Não! E se tiver vírgula, aí é que a coisa pega. E veja bem: como vou sair de casa sem cabeça?

- Vá no closet, arranque a cabeça daquele manequim onde está o Versace e coloque uma peruca.

O corpo foi aos trancos para o closet, desatarrachou cabeça do manequim, e a enfiou  no pescoço. Olhou em volta, escolheu uma de suas perucas e meteu-a na cabeça falsa. Voltou e pegou o telefone.

- Pronto, coloquei. 

- Agora vá pro computador com a câmera ligada. Eu estou online e já te convidei  no chat.

-Espere um pouco. Já está ligado. Pronto. Cadê você?

Como um fantasma, a cabeça apareceu no monitor. O outrora bonito rosto estava agora transtornado, marcado, trágico, sob o cabelo desgrenhado. Havia um tom de tristeza, por trás de toda a fúria.

- Minha cabeça...

- Eu sabia.

- Sabia o que?

- Que você ia optar pela peruca loira. Agora sim, você escolheu sua verdadeira cabeça.

- Não! Minha cabeça é você! Como vou sair na rua com cabeça de boneca?

- Estúpida, você está em Nova Iorque. Ninguém olha pra ninguém.

- Volte, cabeça!

- Bom, voltar eu não volto, mas posso negociar uma coisa.

- Negociar o que?

- A parada é a seguinte: a gente fica se comunicando pela internet. Eu faço as suas contas por você, organizo sua vida,  e em troca, vou ditar umas coisinhas pra você escrever.

- Escrever o que?

- Pois bem: depois da temporada na biblioteca do Eddie, descobri que sou uma romancista nata. E nada me impedirá. Vou escrever um romance e você vai digitar. Comece no teclado: “Nas manhãs de domingo, enquanto os sinos das igrejas tocavam nas localidades situadas ao longo da costa...”

- Calma, que estou procurando o “n”.

- Sua lesma, você vai escrever duzentas páginas. Neste ritmo, não dá.

-  Duzentas o que? Que livro grosso é esse? Não vou conseguir.

- Se não escrever, abandono você e não ajudo em nada.

- Não faz sentido escrever duzentas páginas! Escreva você.

- Como você quer que eu escreva?

- Não sei. Escreva de bico.

- Repita o que você disse.

- Vá digitando com o nariz as letrinhas, e você consegue.

- Você me mandou escrever meu grande romance batendo o bico no teclado, como uma galinha? Eu vou aí te dar uma surra.

- Não! Eu mesma vi numa reportagem de TV,  portadores de deficiência que teclam com o toco do braço, o toco da coxa... vi até uma rendeira do Ceará que usa os berloques com os dedos dos pés... uma gente muito digna.

- Cale a boca e começa! “Nas manhãs de domingo, enquanto os sinos das igrejas tocavam nas localidades situadas ao longo da costa, todos, com suas amantes, voltavam à  casa de Gatsby...”

- Guetsby? Como se escreve isso?

- Coloque o dicionário ao seu lado, você fica consultando as palavras, que não tenho tempo pra isso. Eu só engendro grandes imaginações.

Marily olhou atordoada a estante de livros.

- Meu Deus, quanto livro... vou passar horas pra achar esse dicionário.

- Está na prateleira de baixo, estrupício.

- Os livros estão postos de lado.

- Como é que você queria que eles estivessem?

- Acontece que uns se lê de cima pra baixo. E outros , de baixo pra cima. Fico virando a cabeça o tempo todo.

- Virando que cabeça, pau mandado?

Assim, num exemplo de imagem esquizofrênica, o corpo ia girando sua cabeça de boneca

nas duas diagonais opostas, lendo os títulos escritos ora de cima para baixo, ora de baixo para cima, situação comum nas livrarias.

- Que absurdo! É por essas que não leio! Epa... tem uma coisa...

- Achou o dicionário?

- Não, mas tem um livro aqui com uma palavra no título... G..atsby. Gatsby! Então aqui deve ter tudo sobre a palavra Gatsby...

- Não precisa! Você já sabe como se escreve. Largue esse livro.

- Por que? Deixa eu abrir. Aqui... deixa eu ler... “Nas manhãs de domingo, enquanto os sinos das igrejas tocavam nas localidades situadas ao longo da costa...”

- Pegue o dicionário!

- Mas essa frase é igualzinha a que você me ditou.

- Faça o que eu mando!

- Cabeça, você já tinha escrito esse livro e esqueceu. E ainda reclamando que eu sou a esquecida, hein? Peraí... Cabeça...

- Largue, miserável!

- Cabeça, você é uma imitona. Tá aqui o nome do autor, deixa eu ler: É. Iscoti F... Fitszrslrlrlr.

- Não!

- Scott Fitzgerrald.Você não tem vergonha na cara. E ainda dizendo que é escritora.

- Eu vou aí acabar com a sua raça!

- Olhe aqui, cabeça, não sei como você pode acabar com a minha raça. Você é apenas uma cabeça, sem perna nem braço, e ainda por cima, sem nada dentro. Plagiadora. Imitona.

- Estou indo pra aí.

- Pode vir. Quero ver como você vai me dar essa surra.

- Não me pergunte isso de novo.

- Larará. Como é que você vai me dar uma surra? Ahahahah!

- Estou indo.

A cabeça desmaterializou-se na tela. Marily, despreocupada, começou a espanar a casa e a cantarolar Caetano Veloso: “Araçá azuuuuul...” Mas algo dentro dela a fez parar. E ela compreendeu. A cabeça não tinha membros para a tal surra, mas restava uma arma letal que possuía em sua totalidade e essência: a cabeçada.

Jogou o espanador no chão, correu em direção ao corredor. Tarde demais. Uma explosão esfacelou a vidraça da janela e a cabeça adentrou voando, furiosa, olhando em volta, como um espermatozóide em ziquezague,  à procura de seu antigo corpo.

Marily já tinha alcançado o fim do corredor para se trancar no quarto quando a cabeça, em projétil, lançou-se contra as suas costas. Batida seca. Marily virou-se, transida de dor. E a cabeça parou e refez o caminho em marcha-ré, para tomar impulso.

- Eu quero... escrever!

E veio nova bala. Agora atingiu seu estômago. Marily caiu no chão, segurando a barriga. A cabeça já batia contra o corpo, em movimento contínuo, atingindo os seios, os rins. O corpo entrou no quarto, e o monstro batendo. A cabeça de manequim pulou fora, em direção oposta da peruca. O corpo caiu na cama. A cabeça atrás.

- Eu quero escrever!

Era inútil esquivar-se, desanimador proteger-se. Foi só quando a cabeça a mordeu nas nádegas, que Marily resolveu lutar. Agarrou a medusa com as mãos por trás das costas, tentando arrancar a cabeça de sua bunda, antes que ela tirasse um naco. Mas ela não conseguia parar a mordida, cujos dentes trincados insistia, num urrar abafado:

- I... quire... iscriviiiii!

Marily, em seu maior esforço de vida, conseguiu retirar a cabeça de suas nádegas, segurando firme, trazendo-a apertada em suas mãos. A cama sacolejava com estrondo. A cabeça chispava, cuspia, punha a língua em riste. As pupilas giravam contornando as bordas dos olhos.

- Je voudrais écrire!

Marily ia aproximando a cabeça de seu pescoço. A cabeça, em agonia, gritou algo em acádio-sumeriano. Numa tensão sobrenatural, Marily foi pousando a cabeça em seu antigo lugar. Clock. O vazio estabeleceu-se num silêncio. Marily dormiu.

E acordou com uma dor de cabeça tremenda, numa ressaca mortal. E pensou: “Meu Deus, algo me diz  que desta vez, aprontei alguma, na casa do Eddie Greenhaugh”.



4 comentários:

wair de paula disse...

Eu conhecia "A Mulher Desencarnada", de Oliver Sacks. E agora A Mulher Descabeçada, de Nelson Caldas. Ainda bem que isto não costuma acontecer com homens...
Abraço imenso
W

patlyra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nelson disse...

obrigado, wair

rodrigo disse...

Ótimo argumento para enredo de uma peça de teatro. desenvolva que é sucesso na certa. Ri muito!