
Marily
acordou sem noção. Não se sentia bem. Devia ser ressaca, pensou. Pelo menos não
estava com dor de cabeça. Sem conseguir lembrar da noite passada, foi ao
banheiro lavar o rosto. E veio o choque. Olhou-se no espelho, não conseguiu
enxergar a própria cabeça.
-
Meu Deus, estou cega.
Marily
ainda teve dicernimento de perceber que cega ela não estava, já que via tudo, a
não ser a cabeça.
-
Meu Deus, estou cega de cabeça.
Marily
chorou no chão do banheiro. O telefone tocou até disparar. “Vou ligar pra urgência
oftalmológica” – pensou. O telefone tocou novamente. Ela não ia atender de
novo, mas precisou pegar o fone, já que ia ter que ligar.
-
Alô! – atendeu chorando.
- Atenda o telefone, vagabunda – respondeu a
voz.
-
Quem fala?
-
Não está reconhecendo, sua inútil?
-
Bem... ainda não. Mas seja quem for, não posso falar agora, estou com
problemas.
Marily
desligou na cara da pessoa. Pegou o número da urgência oftalmológica e se
preparou para ligar, sem conseguir. A pessoa do outro lado não havia desligado.
-
Por favor, desligue! Estou precisando fazer uma ligação urgente!
-
Vai ligar pra onde, traste?
-
Vou chamar a ambulância!
-
Não perca seu tempo.
- Desligue! Você não sabe o que estou passando.
-
Sei sim. E já que sua burrice a impede de saber quem está falando, vou ter que
dizer. Aqui é a sua cabeça.
Novo
choque. Marily caiu no chão, com telefone e tudo. Era sua própria cabeça quem
falava do outro lado da linha. Parecia furiosa, parecia espumando.
-
Estou ligando a contra-gosto.
-
Como foi isso, por que você está separada de mim?
-
Você perdeu a cabeça na festa do Eddie Greenhaugh. Tomou todas as drogas,
copulou com cinco...
-
O que é copular?
-
Cale-se, ignorante! Você fudeu, se melecou, se espojou, fez seu escândalo e foi
embora sem me levar. Esqueceu a bolsa, as chaves e a própria cabeça. E olhe que
eu estava muito bem presa.
-
Então corra pra cá, pelo amor de Deus.
- Nunquinha. Depois que me libertei de
você, descobri muita coisa na minha vida. Um mundo de sensações, de
pensamentos. Estou livre.
- Mas eu não posso viver sem você!
- Então por que me esqueceu, desgraçada? Fiquei
aqui perdida na casa do Eddie Greenhaugh sozinha na biblioteca, escondida,
magoada! – soluçou.
- Perdão! Eu nunca mais vou fazer isso!
- Não perdôo nunca – recompôs-se a cabeça
– mas aí, na minha solidão naquela
biblioteca imensa, dei uma passadas nuns Kafka, nuns Dostoievsky, nuns Poe... e
descobri que não preciso de você.
- Não posso ficar sem cabeça. Não sei
fazer nada, só somar e diminuir.
- Puta que pariu, nem dividir e
multiplicar?
- Não! E se tiver vírgula, aí é que a
coisa pega. E veja bem: como vou sair de casa sem cabeça?
-
Vá no closet, arranque a cabeça daquele manequim onde está o Versace e coloque
uma peruca.
O
corpo foi aos trancos para o closet, desatarrachou cabeça do manequim, e a enfiou no pescoço. Olhou em volta, escolheu uma de
suas perucas e meteu-a na cabeça falsa. Voltou e pegou o telefone.
-
Pronto, coloquei.
-
Agora vá pro computador com a câmera ligada. Eu estou online e já te convidei no chat.
-Espere
um pouco. Já está ligado. Pronto. Cadê você?
Como
um fantasma, a cabeça apareceu no monitor. O outrora bonito rosto estava agora
transtornado, marcado, trágico, sob o cabelo desgrenhado. Havia um tom de
tristeza, por trás de toda a fúria.
-
Minha cabeça...
-
Eu sabia.
-
Sabia o que?
-
Que você ia optar pela peruca loira. Agora sim, você escolheu sua verdadeira
cabeça.
-
Não! Minha cabeça é você! Como vou sair na rua com cabeça de boneca?
-
Estúpida, você está em
Nova Iorque. Ninguém olha pra ninguém.
-
Volte, cabeça!
- Bom, voltar eu não volto, mas posso
negociar uma coisa.
-
Negociar o que?
-
A parada é a seguinte: a gente fica se comunicando pela internet. Eu faço as suas
contas por você, organizo sua vida, e em
troca, vou ditar umas coisinhas pra você escrever.
-
Escrever o que?
-
Pois bem: depois da temporada na biblioteca do Eddie, descobri que sou uma
romancista nata. E nada me impedirá. Vou escrever um romance e você vai
digitar. Comece no teclado: “Nas manhãs
de domingo, enquanto os sinos das igrejas tocavam nas localidades situadas ao
longo da costa...”
-
Calma, que estou procurando o “n”.
-
Sua lesma, você vai escrever duzentas páginas. Neste ritmo, não dá.
- Duzentas o que? Que livro grosso é esse? Não
vou conseguir.
-
Se não escrever, abandono você e não ajudo em nada.
-
Não faz sentido escrever duzentas páginas! Escreva você.
-
Como você quer que eu escreva?
-
Não sei. Escreva de bico.
-
Repita o que você disse.
-
Vá digitando com o nariz as letrinhas, e você consegue.
-
Você me mandou escrever meu grande romance batendo o bico no teclado, como uma
galinha? Eu vou aí te dar uma surra.
-
Não! Eu mesma vi numa reportagem de TV, portadores de deficiência que teclam com o
toco do braço, o toco da coxa... vi até uma rendeira do Ceará que usa os
berloques com os dedos dos pés... uma gente muito digna.
-
Cale a boca e começa! “Nas manhãs de
domingo, enquanto os sinos das igrejas tocavam nas localidades situadas ao
longo da costa, todos, com suas amantes, voltavam à casa de Gatsby...”
-
Guetsby? Como se escreve isso?
-
Coloque o dicionário ao seu lado, você fica consultando as palavras, que não tenho
tempo pra isso. Eu só engendro grandes imaginações.
Marily
olhou atordoada a estante de livros.
-
Meu Deus, quanto livro... vou passar horas pra achar esse dicionário.
-
Está na prateleira de baixo, estrupício.
-
Os livros estão postos de lado.
-
Como é que você queria que eles estivessem?
-
Acontece que uns se lê de cima pra baixo. E outros , de baixo pra cima. Fico
virando a cabeça o tempo todo.
-
Virando que cabeça, pau mandado?
Assim,
num exemplo de imagem esquizofrênica, o corpo ia girando sua cabeça de boneca
nas
duas diagonais opostas, lendo os títulos escritos ora de cima para baixo, ora
de baixo para cima, situação comum nas livrarias.
-
Que absurdo! É por essas que não leio! Epa... tem uma coisa...
-
Achou o dicionário?
-
Não, mas tem um livro aqui com uma palavra no título... G..atsby. Gatsby! Então
aqui deve ter tudo sobre a palavra Gatsby...
-
Não precisa! Você já sabe como se escreve. Largue esse livro.
-
Por que? Deixa eu abrir. Aqui... deixa eu ler... “Nas manhãs de domingo, enquanto os sinos das igrejas tocavam nas
localidades situadas ao longo da costa...”
-
Pegue o dicionário!
-
Mas essa frase é igualzinha a que você me ditou.
-
Faça o que eu mando!
-
Cabeça, você já tinha escrito esse livro e esqueceu. E ainda reclamando que eu
sou a esquecida, hein? Peraí... Cabeça...
-
Largue, miserável!
-
Cabeça, você é uma imitona. Tá aqui o nome do autor, deixa eu ler: É. Iscoti
F... Fitszrslrlrlr.
-
Não!
-
Scott Fitzgerrald.Você não tem vergonha na cara. E ainda dizendo que é
escritora.
-
Eu vou aí acabar com a sua raça!
-
Olhe aqui, cabeça, não sei como você pode acabar com a minha raça. Você é
apenas uma cabeça, sem perna nem braço, e ainda por cima, sem nada dentro. Plagiadora.
Imitona.
-
Estou indo pra aí.
-
Pode vir. Quero ver como você vai me dar essa surra.
-
Não me pergunte isso de novo.
-
Larará. Como é que você vai me dar uma surra? Ahahahah!
-
Estou indo.
A
cabeça desmaterializou-se na tela. Marily, despreocupada, começou a espanar a
casa e a cantarolar Caetano Veloso: “Araçá azuuuuul...” Mas algo dentro dela a
fez parar. E ela compreendeu. A cabeça não tinha membros para a tal surra, mas
restava uma arma letal que possuía em sua totalidade e essência: a cabeçada.
Jogou
o espanador no chão, correu em direção ao corredor. Tarde demais. Uma explosão
esfacelou a vidraça da janela e a cabeça adentrou voando, furiosa, olhando em
volta, como um espermatozóide em ziquezague,
à procura de seu antigo corpo.
Marily
já tinha alcançado o fim do corredor para se trancar no quarto quando a cabeça,
em projétil, lançou-se contra as suas costas. Batida seca. Marily virou-se, transida
de dor. E a cabeça parou e refez o caminho em marcha-ré, para tomar impulso.
-
Eu quero... escrever!
E
veio nova bala. Agora atingiu seu estômago. Marily caiu no chão, segurando a
barriga. A cabeça já batia contra o corpo, em movimento contínuo, atingindo os
seios, os rins. O corpo entrou no quarto, e o monstro batendo. A cabeça de
manequim pulou fora, em direção oposta da peruca. O corpo caiu na cama. A
cabeça atrás.
-
Eu quero escrever!
Era
inútil esquivar-se, desanimador proteger-se. Foi só quando a cabeça a mordeu
nas nádegas, que Marily resolveu lutar. Agarrou a medusa com as mãos por trás
das costas, tentando arrancar a cabeça de sua bunda, antes que ela tirasse um
naco. Mas ela não conseguia parar a mordida, cujos dentes trincados insistia,
num urrar abafado:
-
I... quire... iscriviiiii!
Marily,
em seu maior esforço de vida, conseguiu retirar a cabeça de suas nádegas,
segurando firme, trazendo-a apertada em suas mãos. A cama sacolejava com
estrondo. A cabeça chispava, cuspia, punha a língua em riste. As pupilas
giravam contornando as bordas dos olhos.
-
Je voudrais écrire!
Marily
ia aproximando a cabeça de seu pescoço. A cabeça, em agonia, gritou algo em acádio-sumeriano. Numa
tensão sobrenatural, Marily foi pousando a cabeça em seu antigo lugar. Clock. O vazio estabeleceu-se num
silêncio. Marily dormiu.
E
acordou com uma dor de cabeça tremenda, numa ressaca mortal. E pensou: “Meu Deus, algo me diz que desta vez, aprontei alguma, na casa do
Eddie Greenhaugh”.