
Maria
Pia era uma atriz que angariava aplausos. O que ninguém sabia é que, no fundo
obscuro de sua alma, crescia um desejo sinistro. O sonho de Maria Pia era, pelo
menos uma vez na vida, levar uma vaia. Daquelas de estourar tímpanos. E de
levar tomatadas, bolinhos de papel e de ser escorraçada em público e imprensa. Ela sabia disso, só não entendia o porquê.
Um prazer mórbido, pensava sem
preocupação.
Mas
Maria Pia continuou a brilhar, abarcando públicos mais abrangentes, até longínquos,
e a coisa foi tomando outras proporções. Passou a ouvir uma voz de suas
profundezas, que dizia: “pare com isso, Maria Pia. Já está demais.” A cada
“brilhante!”, a cada “bravíssima!”, ela ouvia de si: “Está vendo? Você depende
disso”. E ela refletia:
-
Qual é o problema? Dependo disso com o maior orgulho!
-
Você não se sente idiota dependendo dos outros?
-
Mas é o meu trabalho. Tento fazer o melhor que posso.
-
Você quer é aparecer.
-
Não quero não.
-
Sei. O pior é a sua cara-de-pau de enganar os outros. Até porque você sabe
muito bem que é uma péssima atriz.
-
Então por que me aplaudem?
-
Por moda. Inventou-se que você é genial. E você sabe que o público é, antes de
tudo, burro. E a crítica especializada não tem ficado longe disso. Ficou chique
dizer que você é boa atriz.
-
Quem é você?
-
Eu que pergunto, caceta! Essa máscara tem que cair. Você não sabe das delícias
de um fracasso, já lhe ensinou o nosso Nelson. É o fracasso quem a colocará em
seu devido lugar.
Mas
a carreira continuava célere, Maria Pia adorada por todos, e a própria voz ali
junto, nos momentos mais cruciais do palco. Certa vez, em uma cena de Medeia, no
instante em que a personagem revela a Jasão que matou os filhos, a voz interior
disse:
-
A hora é essa. Coloca na fala de Medeia a voz do Pato Donald.
Em
outra, quando Julieta caiu morta, a voz:
-
Abre os olhos e ressuscita aquela frase punk manjada: Julieta is not dead!
E
quando Blanche Dubois foi atacada por Kowalsky:
-
Avisa pra platéia que você não pode cair de costas por causa de seu furúnculo
no cóccix. Levante a saia e mostre a pereba.
E
o grande dia chegou: no New York Times, em letras exageradamente garrafais: MARIA
PIA. A ATRIZ DO SÉCULO. Ela estava em Telaviv, quando levou o choque. Em
minutos, ia entrar em cena com “A boa alma de Sechwan”, de Brecht, para os
israelenses. Nesta noite de gala, foi aplaudida por 20 minutos ininterruptos.
Durante este tempo, teve que continuar agradecendo, fazendo reverências e
gracejos dezenas de vezes, enquanto o turbilhão em sua cabeça já a estava fazendo
ficar oca, pois suas vísceras pareciam se aniquilar, como a cobra come o
próprio rabo. Ouviu coisas indizíveis dela para ela mesma. Palavras de
baixíssimo calão, intimidades grotescas, insultos irreveláveis. Parou de ouvir
por uns segundos. Mas depois...
-
E aí, sem-vergonha?
-
Sim. É insuportável.
Olhou
a platéia como quem observa multidões do
planeta, e disse:
- Senhoras e senhores. Foi com grande prazer que apresentei um dos textos mais importantes da civilização. Aquele que fala de nossa dualidade, de nosso céu e de nosso inferno. Brecht conhecia e amava o ser humano. Com todas as nossas contradições. O mal e o bem. Por isso, vou falar um trecho dito por uma figura histórica: “É sempre mais difícil lutar contra a fé que contra o conhecimento”.
Aplausos.
- Esperem, esperem. Gostaria de acrescentar que este trecho que vocês aplaudiram com tanto entusiasmo é do senhor Adolf Hitler.
A
descomunal platéia judia em sua totalidade calou-se como um mar sem vento. Maria
Pia continuou parada, querendo mirar o olho fundo de seu público. E esperou finalmente
as pedradas da mulher adúltera.
Silêncio.
Uma tosse. Pensamentos cruzando. Murmúrios. Uma batida de mão. Duas. Estalos de
vários lados. Foi–se formando uma tempestade sobre o navio. As palmas.
-
Viva Brecht!
-
Viva Freud!
-
Viva Maria Pia!
O
golpe foi mortal. Maria Pia já havia dito a maior ofensa possível, não tinha
como ir além. Não! Ela chorou,
berrou, socou a cara, abaixou-se, bateu doze vezes a cabeça no chão, rolou pelo
palco como um cigarro, levantou-se, arrancou vários cabelos que cobriam o lobo
parietal esquerdo e o lobo parietal direito, enquanto o aplauso avolumava.
-
Magnífica!
E
ela pensou pela última vez: a
unanimidade...
Levou
a mão ao peito, e caiu já morta.
MARIA
PIA MORRE SOB ESTRONDOSO APLAUSO, disse o New York Times. Seu corpo desfilou
pela Broadway sob chuva de pétalas.
4 comentários:
Sofisticada.
Achei inspiradora, trágica e engracadíssima.
Ë muito boa mesmooooooooo
Cadê minha vaia, Rodrigo? Valeu.
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