
Creio
que mais que a humanidade inteira, sempre tive medo desse negócio de virar.
Desde criança, eu ouvia falar em gente que virou lobisomem, que virou vampiro, que
virou sapo. Esse negócio de virar sempre esteve em todas as culturas antigas.
Nas aldeias do noroeste da Índia, por exemplo, as pessoas extraordinariamente
velhas, quando não eram mais vistas, é que tinham virado tigres. E ganhavam as
matas, aparecendo de vez em quando pra espiar os parentes. As transformações
sempre surpreenderam, mesmo que sejam coisas naturais, como virar adulto. Haja
vista o insuportável “Nossa, como esse menino cresceu! Virou um rapazinho”.
Mas
dentro de toda essa miríade de transformações, lembro que o que mais me
impressionava era esse tipo de conversa:
-
Cadê Heloisa?
-
Ah, formou-se em médica.
-
E Mary-Ann?
-
Ah, foi mãe agora há pouco.
-
E Lucíola?
-
Virou sapatão.
Pronto.
A maldição estava feita. E eu pensava como é que uma mulher virava sapatão. Porque
se uma se graduava estudando na faculdade, outra era mãe depois de copular, e a
cidadã virava sapatão como? Que diabo ela fazia pra isso? Se ela virou, é
porque antes não era. Ouvi de tudo: problemas em casa, filha de pais separados,
fumou muita maconha, juntou-se com gente que não presta. Não me importei muito
com esses motivos, não me fazia sentido. Tinha que ser um motivo muito, muito
superior. Mas a minha curiosidade não era só essa: era o virar. Qual era o
toque de viração? Em que exato momento o ser humano virava sapatão? Os
lobisomens eu sei. Vai criando uns pelinhos na mão, os dentes vão crescendo, as
garras vão se armando, e daí o bote. Lobisomem, certamente.
Imaginei
uma moça feminina e frágil de nome Dilaila, por exemplo, indo a um supermercado
pra comprar docinhos que a tia pediu. “Mas só docinhos, não me traga mais
nada”. Lá foi ela bonitinha, comprando os docinhos. Mas o supermercado estava
tão lindo, tão variado, que ela pensou em levar algo mais. Ia sorrindo para
tomates, fiambres, alfaces. Aí viu uma
prateleira repleta de macaxeira. E Dilaila pensou: “vou levar uma macaxeirazinha
pra ceia de titia”. Contrariando a vontade da tia, a moça pegou na macaxeira –
variação da mandioca-brava. Apalpou e sentiu a rudeza, o impulso, a forma
roliça. Aí segurou com determinação. Experimentou as forças da terra, a latência
do tubérculo enterrado, o toco e o poder. Dilaila ergueu a macaxeira para o
alto. Deu-se um pipoco surdo, que só ela ouviu. Pou.
Irritou-se.
Pagou no caixa reclamando do preço. Saiu pra rua chutando lata, comprou uma
camisa do Sport Clube do Recife e botou por cima. Ficou até meio cangalha. Falou com sua ex-costureira
levantando o polegar e entrou no barbeiro. Chegou em casa dando murros na porta.
A
tia de dentro perguntou.
-
Quem está batendo com força?
-
Sou eu, porra.
-
Maria do Socorro? Sua voz tá grossa!
-
Sou eu, Dilaila, tá mouca?
A
tia abriu a porta e viu a figura da sobrinha batendo um punho no outro com a
camisa do Sport e o cabelo de Xitãozinho & Xororó.
-
Minha filha, você virou sapatão?
-
Virei, titia, e eu vim aqui pra te comer!
8 comentários:
Uma narrativa inspiradora. Não sei se você transforma contos em crônicas ou se conta crônicas como contos. Excelente!
Eu escrevo uma coisa que alguns consideram crônicas e outros, contos. Estes todos até agora eu considero crônicas. Valeu, Zé.
Ótimo. Não menos do que isso, ótimo, reitero.
Abraços.
Obrigado, Wair.
Nelson, eu escrevi aqui o meu comentário! Nao sei onde foi aparecer, creio que está na minha conta de yahoo! yo ´qué sé!
Voltando a escrever o comentário, eu nao tinha feito direito...
´Gostei da crônica e do tema. Gostaría de saber se fôsse o contrário, por exemplo, como sería a virada de um Homem, homem virar viado? Nao quero ofender ninguém com o nome usado, similar a sapatao, nao? Vulgar, porém é o que se usa normalmente. Tenho curiosidade de saber como enfocarías! kkkk
Vamos esperar A Hora da Virada 2!
Estou aguardando ansiosamente A HORA DA VIRADA 2.Com certeza, vamos ter revelaçoes excitantes...valeu! kkk
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